Kuzu no Honkai - Sobre sentimentos e adolêscencia
*AVISO: O artigo a seguir contém inúmeros spoilers. Se pretende assistir a obra, leia por conta e risco.
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
Este poema é intitulado Quadrilha, de um dos
maiores poetas da literatura portuguesa (senão o maior), Carlos Drummond de
Andrade. Em sua primeira fase, Drummond escreveu muito sobre as ironias da vida,
antes de adotar um ponto de vista pessimista e melancólico sobre a mesma.
Apesar de desesperançoso, acho que não existem versos melhores para abordar
Kuzu no Honkai.
Produzido pelo estúdio Lerche, que eu
desconhecia até o momento da exibição do anime (o que é uma certa vergonha pra
mim, pois adaptaram grandes obras como Assassination Clasroom, e dois spin-offs
de Fate), a série foi provavelmente a grande surpresa da temporada que acabou
de se encerrar. Com um visual simplesmente deslumbrante, e uma trilha sonora
linda, certamente foi o grande destaque de Inverno 2017 (pelo menos para mim).
Mas neste texto, vou fugir dos aspectos técnicos e me concentrar na história de
Kuzu no Honkai.
O anime conta a história de Hanabi Yasuraoka,
uma garota do ensino médio, que se sente profundamente apaixonada por seu
professor, que é um amigo de infância, Narumi Kanai. Porém o mesmo não retribui
seus sentimentos, tendo uma certa atração por Akane Minagawa, professora do
mesmo colégio de Hana. Em um breve momento, a mesma conhece Mugi Awaya, um
garoto que sente os mesmos sentimentos por Akane, obviamente também não sendo
correspondido. Os dois então, constroem uma amizade, e têm uma ideia para
amenizar seu sofrimento: compensar a carência um do outro com prazer sexual,
fingindo para o mundo exterior um relacionamento que não existe.
Da direita para a esquerda, de cima para baixo: Kanai, Akane, Ecchan, Hanabi, Mugi e Noriko |
Um amor para consolar... |
Em meio a história, conhecemos também Noriko
Kamomebata, que é uma amiga de infância de Mugi e é apaixonada pelo mesmo, e
Sanae Ebato, única e melhor amiga de Hanabi, chamada por ela de Ecchan.
Percebeu a receita pronta pra uma explosão nuclear de sentimentos? Também há
Atsuya Kirishima, Mei Hayakawa e Takuya Terauchi, que possuem importância em
determinados pontos da história.
"Voces dois são como um príncipe e uma princesa quando estão juntos, Noriko, Mugi." |
Tendemos a assistir muito mais obras que nos
tirem do mundo real, que nos mostram personagens com superpoderes em uma
situação impossível, ou até mesmo produções com relações interpessoais
positivas ou negativas que dificilmente acontecem no dia a dia das pessoas
(vide os zilhares de haréns que temos...), junto a personagens idealizados ao
extremo. Alternadamente, costumamos assistir obras metafóricas, com elementos
fantasiosos que, ao contrário de nos oferecerem uma fuga, nos trazem uma
reflexão interior por meio de uma criação muito mais abstrata do que palpável
(eu gosto de citar o filme Ela, de Spike Jonze, quando penso no tema).
Não existe um tipo de dramaturgia mais ou
menos artístico que o outro. Acredito que a produção de algo que nos faça
produzir sentimentos, mesmo que não tenham a intenção de nos fazer pensar, seja
parte da arte (tanto que Friedrich Nietzsche a citou como uma ferramenta para
suportar o peso da existência, em seu texto Crepúsculo dos Ídolos, mas isso não
é um assunto a ser abordado aqui). Porém, não podemos esquecer do mundo em que
estamos inseridos, e a olharmos para ele para podermos lembrarmos da realidade
em nossa volta. E é sobre isso que o anime em questão traz de volta dentro de
nós.
Kuzu no Honkai de início te abala bastante,
de modo que até o 5º ou 6º episódio o espectador tende a acreditar que não
exista um final aonde não aconteça uma tragédia. Mas acho que é justamente ao
contrariar a expectativa daqueles que acompanharam a série em que o anime
brilhou.
A começar pelos primeiros episódios. Nós
vemos de início, dois adolescentes desiludidos suprindo os desejos um do outro.
Ao longo da primeira metade, nós vemos que ninguém na história possui uma
índole boa ou ruim, onde vemos Hanabi sem saber como resolver seu caso com
Ecchan, ao mesmo tempo em que a mesma também a utiliza como conforto, assim
como faz com Mugi, trazendo um sentimento de culpa, pois a mesma diz em
determinado momento que ela é a única que não pode sofrer por culpa dela.
Porém, Ecchan, mesmo sabendo dos sentimentos de sua amiga, aproveita do mesmo
sentimento de culpa dela, para poder se aproximar e nutrir sua própria
esperança em ter Yasuraoka para si, inclusive chegando a provocar Mugi e
planejando deixar mais uma marca no pescoço de Hana para sabotar o
“relacionamento” entre os dois.
A primeira noite de Ecchan e Hanabi |
Hanabi, aliás, passa por uma montanha russa
de sofrimento ao longo da animação, principalmente na primeira metade. Após se
envolver com Mugi, e descobrir quem Akane realmente é, a mesma decide dar o
troco na professora, tomando aqueles que deveriam deseja-la para si, começando
por Takuya. A cena que ilustra essa corrupção, no episódio 6, é uma das
melhores do anime, em que nos é mostrado uma discussão entre Hana e seu eu do
passado. Por mais “louco” que isso pareça, em momentos de revolta, frustração e
semelhantes, todos nós já nós pegamos nos comparando com nós mesmos, para
sabermos se aprovaríamos o que nos tornamos. Ecchan, ao descobrir as atitudes
verdadeiras de Hana, decide se render a mesma, dizendo para ela para usá-la
como consolação no lugar de Mugi.
"Mas eu simplesmente não posso parar" Hanabi surtando em um dos melhores momentos do anime |
Já Akane seria a típica mulher liberta de
vínculos sentimentais, que gosta de dormir com diferentes homens sem
estabelecer uma relação fixa, o que a princípio não tem nada de errado... com
exceção de uma característica da mesma. A professora não faz isso diretamente
por prazer sexual, mas sim porque a mesma se diverte em brincar com os
sentimentos daqueles ao seu redor, roubando as pessoas amadas por outras, se
sentindo desejada e invejada ao mesmo tempo. Não demora muito para ver um
conflito entre ela e Hanabi, tendo seu auge no 4º episódio, com Akane dizendo a
garota que dormiu com Kanai, dando início na breve tentativa de vingança da
aluna.
Essa mulher irritou muita gente no começo |
Mugi me deixou confuso muitas vezes no anime.
O garoto era apaixonado por Akane desde que ela dava aulas particulares para
ele. Namorou Mei mesmo tendo sentimentos por outra mulher. E Hayakawa, ao
descobrir isso, mostrou a seu namorado as atitudes da professora. Ainda assim,
Mugi continuou apaixonado por ela, encerrando sua relação com Mei. Um dos
motivos para minha confusão em relação a ele, é que em um breve momento vemos o
mesmo dando a entender que sentiu um certo prazer ao ver a marca no pescoço que
Ecchan deixou em Hanabi, porém decide dar o troco na mesma por ela estar saindo
com Takuya. Para fazer isso, finalmente decide sair com Noriko.
Isso tudo foi nada mais que uma descrição de
tudo o que ocorreu no anime até o final do episódio 7. Eu fiz isso porque até
aqui, Kuzu no Honkai nos mostra mais como um anime cruel, nos despertando
sentimentos de repulsa e ódio (pelo menos, na maioria das cenas). Não atoa
muitas pessoas deixaram de assistir a série já neste ciclo da história, tanto
que o nome da obra em inglês é Scum’s Wish (O Desejo da Escória, traduzindo).
Mas é no final do deste mesmo episódio que vemos as reais ambições da produção
do estúdio Lerche.
Vemos então os protagonistas resolvendo aos
poucos seus dramas pessoais. Primeiro, Mugi em uma tentativa de relação sexual
com Noriko, desisti, pois para ele, seria cruel demais se aproveitar de sua
amiga de infâncias, sendo que a mesma aceita suas intenções verdadeiras,
sabendo que, já que não poderia ter seu amado para si, ao mesmo poderia ter uma
última grande lembrança.
"Porque eu simplesmente acabei recriando ele em minha mente para se adequar em minhas necessidades" |
Já Hana, ao perceber que cada vez mais se
parecia com sua rival, desiste de tomar Takuya para si, e faz uma promessa
junto a Mugi, que ambos se declarariam aos seus amados, seriam rejeitados, e
então começariam uma relação séria. O episódio que nos mostra isso, o oitavo,
tem a emocionante cena da garota chorando nos braços de Kanai. Mas,
surpreendentemente, Mugi começa a dormir com Akane, provavelmente porque a
professora sabia que desse modo iria afetar Hanabi.
Mugi e Hana prometendo um ao outro ficarem juntos após seu drama acabar... |
...e Mugi não resistindo á sua tentação máxima |
O episódio 9, que para mim é o melhor do
anime, resolve o conflito entre Ecchan e Hanabi. Tendo destaque também para
Kirishima, nós vemos Ecchan levando Hanabi para uma casa de campo, para tentar
uma última vez ficar com Hana. Seu primo, que é apaixonado pela mesma, a diz
que isso não vai dar certo, sendo ele aliás o único personagem moralmente bem
resolvido na série. A garota ruiva então, decide ter seus últimos momentos com
sua amiga, falando que vai deixa-la livre para seguir suas emoções. Em um
momento lindo, na chuva, Yasuraoka diz para sua amiga que mesmo sabendo que ela
deveria se afastar, quer ter Ecchan por perto. Em uma reação emocionante, as
mesmas terminam se abraçando.
O ínicio do fim do sofrimento de Ecchan |
E então vemos a resolução do último arco, a
disputa por Akane entre Mugi e Kanai. O primeiro decide mudar ela, sabendo de
sua índole suja, mas ainda assim apaixonado por ela. Mas é Kanai quem
surpreende a professora, em que toma atitudes que aparentemente, nenhum, ou
poucos homens tomaram com ela. Primeiro, ao sair com a mesma sem pretensões de
obter sexo, e depois, no momento em que a mesma confessa a ela ser uma “puta”
(segundo suas próprias palavras). Kanai diz a ela que a ama do mesmo jeito, e
se for preciso, ficara com a ela mesmo que continue a dormir com vários homens.
Lembrando que no início de seus encontros, Akane achava o professor um homem
extremamente chato, por ele ser certinho e entre outras atitudes moralmente
corretas. Porém, com estas declarações, a mesma acaba sensibilizada, e decide
sair mais uma vez.
É ai que temos outro episódio ótimo, o 11º,
que nos mostra o último encontro com Mugi, e o pedido de casamento de Kanai. O
garoto, extremamente emocionado, reconhece a perda da amada, e chorando, diz
que ela será inesquecível para ele. Já, durante o pedido de casamento,
descobrimos que Akane, embora tenha deixado implícito antes, é na verdade como
se fosse uma versão de Hanabi que tenha continuado com seu plano. Uma mulher vazia,
que tenta compensar seu tédio manipulando as emoções daqueles a sua volta. Mas
ao descobrir que na verdade ela é capaz de ser amada por alguém, se pergunta se
isso realmente é necessário, se não é hora de tentar ser um pouco feliz, ao
menos.
"É claro que sim" A desistência de Akane em resistir a seus sentimentos |
E então o último episódio. Imagino que muitas
pessoas tenham sentido falta de um clímax maior no anime, mas o encerramento
dele é simplesmente perfeito. Nós vemos o fechamento de toda a história. Nós
vemos Hanabi chegando a conclusão de sua relação com Mugi, que ao contrário do
que muitos esperavam, não decidem continuar um relacionamento sério, ao mesmo
tempo que a mesma recebe um pedido de encontro de outro garoto. Mesmo sendo
interrompida por Ecchan, voltando a falar com Hanabi, a mesma transparece um
certo compadecimento ao garoto. E sua amiga, finalmente decide se mostrar
pronta para recomeçar.
Um momento que para mim é importante neste
episódio, é quando Hanabi decide ver um desfile de moda no festival cultural do
colégio, e vê Noriko deslumbrante em um vestido feita por ela mesma. Sem seu
cabelo usual, em que episódios anteriores nos é mostrado a garota retirando os
laços que costumava usar, Hana lembra de uma fala importante que Noriko diz a
ela, que se a mesma não fizer algo por si mesma, não se sentirá realizada. Isso
nos mostra a perda da inocência da garota, tida como infantil e ingênua
outrora.
Já perto do final do episódio, vemos Hana e
Mugi finalmente confortando um ou outro de uma maneira amigável, em que ambos
se abriram um ao outro não com desejos carnais, mas sim compartilhando seu
próprio sofrimento.
Kuzu no Honkai termina com um final bem
inesperado, levando em consideração seu início. No fim, não é uma obra sobre a
sujeira dentro de cada pessoa, mas sim sobre o amadurecimento de nós mesmos, sobre
as escolhas que somos obrigados a tomar.
Enfim, eles encontraram amor um ao outro |
Com certeza, todos aqui na adolescência
tiveram uma paixão platônica, um amor não correspondido. E por mais que não
queiramos negar, é justamente nela que sentimos o auge da frustração, do
rancor, do egoísmo que sentimos. Este anime é uma ilustração sobre isso. Sobre
a obrigatoriedade de seguirmos uma vida em que nem tudo pode ser definido por
nós mesmos, uma realização de que não podemos ter o controle de tudo o que
acontece em nossa volta simplesmente porque todos possuem sentimentos, assim
como o direito de escolha, de seguir ou não eles.
E, seguindo a temática do anime, isso nos faz
sofrer, pois em uma sociedade que cada vez mais apressa as pessoas a terem seus
desejos sexuais satisfeitos, e pressiona elas a finalmente se verem em
relacionamentos sérios, ser obrigado a estar sozinho se torna uma dor muito
grande, ao mesmo tempo em que as pessoas se contradizem ao dizerem que temos de
sermos felizes por nós mesmos. Em um determinado momento, Hanabi diz a Mugi que
não tem medo de estar sozinha, pois já se sentia assim, e ambos então se
beijam, sob a justificativa de que a solidão torna tudo algo fútil, trivial,
sendo a relação deles então mais uma dessas coisas fúteis e triviais.
- Estamos procurando o verdadeiro amor.
Sabemos que não se acha fácil. Não importa o quanto rezemos... pode ser algo
que nunca teremos. Podemos nos machucar ainda na próxima vez. Pode nos fazer
sentir ainda mais isolamento. Mas... vamos continuar procurando. Não precisamos
ser salvos ainda. Estamos procurando o verdadeiro amor. Por isso continuamos a
viver.
Eu comecei este texto com um poema de Carlos
Drummond de Andrade, e o terminei com a última fala de Hanabi, interrompida no
meio pelo adeus dela com Mugi. Acredito que este seja talvez, o maior que
possamos ter na vida. Pode parecer otimista para alguns, pessimista para
outros. Para mim é um pouco melancólico, como o anime é. Mas definitivamente é
por esta mensagem que ele se tornou um dos animes mais marcantes que já
assisti.
Simplesmente incrível... |
Kuzu no Honkai - Sobre sentimentos e adolêscencia
Revisado por Unknown
em
sábado, abril 01, 2017
Nota:
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